Adèle (coincidência ou não interpretada por Adèle Exarchopoulos, de Quando Eu Era Sombrio) está passando pela fase de amadurecimento da vida: a adolescência. Tempos de descobertas, de reafirmações, de novas experiências. Num primeiro momento, sua rotina não difere em nada de outros jovens de mesma idade: aula pela manhã (com direito a perder o ônibus um dia ou outro), a azaração com as amigas, jantar em família, deveres de casa…
No campo afetivo, ela ainda não demonstra tanta preocupação com o assunto e transita por esses caminhos mais por impulso de terceiros do que por vontade própria. Dessa forma que ocorre com Thomaz (o rapaz que ela mal reparava pelos corredores da escola e que era vidrado nela). Os dois só começam a sair por indicação de suas amigas e se a primeira transa entre eles rola, é também quase uma imposição delas.
Mas a personagem Exarchopoulos sentia-se estranha com todo esse turbilhão de sentimentos e hormônios que começava a agitar sua, até então, pacata vida. A sensação de vazio interior que acomete os apaixonados, que aprendera recentemente nas aulas de Literatura, passa a corroer o seu coração a partir do momento que cruza com uma garota de cabelos azuis numa rua qualquer. Nem os passatempos conjuntos, as conversas com Thomaz (o novato Jérémie Laheurte) são o suficiente para fazê-la esquecer daquela inconfundível garota.
Chegou a hora de Adèle se descobrir realmente, chegou a hora de percorrer novos caminhos que inevitavelmente a levarão para a menina de cabelos azuis. Novas experiências que são necessariamente dolorosas para todos aqueles que a vivenciam: veja a sutil lágrima que corre no rosto de Thomaz quando ela termina com ele. A confusão na mente da protagonista só aumenta quando dá o seu primeiro beijo lésbico e o aprecia, mesmo sendo algo tão corriqueiro e sem valor sentimental para quem a beijou. Ao procurar desabafar com seu amigo gay Valentin (o também novato Sandor Funtek), esse a leva a conhecer a agitada noite GLS da cidade, locais em que provavelmente encontraria a dona dos cabelos azuis. Essa era a esperança de Adèle.
Antes mesmo de chegarmos ao clímax da história, notamos o quanto envolvidos estamos com a trama dirigida, escrita e produzida por Abdellatif Kechiche (de Vênus Negra e O Segredo do Grão). Acompanhando a busca de Adèle por sua paixão desconhecida, sentimos desespero quando a menina de cabelos azuis surge imediatamente atrás da protagonista em um point lésbico sem ela notar. Um triunfo habilmente construído pela direção do longa que descreve em todos os detalhes a vida de Adèle e seus conflitos, usufruindo do tempo necessário sem se importar o quanto isso dure. A inserção rápida dos protestos nas ruas, por exemplo, mostra a inquietude típica da juventude da protagonista, mas ao mesmo tempo adquire um importante valor narrativo ao ambientar o filme no presente com os jovens encarando e sofrendo na pele a crise econômica atual. O resultado são sequências longas, mas enriquecedoras para a narrativa, as grandes responsáveis pelos 179 minutos de duração de Azul é a Cor mais Quente e nem precisamos chegar aos créditos finais para perceber como essa metódica construção é eficaz.
Assim, passamos a conhecer a experiente Emma, que contou com a performance fenomenal de Léa Seydoux (Missão Impossível: Protocolo Fantasma e Meia-Noite em Paris). Estudante do 4º ano da faculdade de Belas Artes, a “cabelos azuis” usa habilmente o seu ofício para envolver e conquistar Adele, aproveitando-se da inexperiência da “menor de idade”: com autorretratos feitos ao ar livre, com discussões filosóficas envolvendo os assuntos preferidos de cada uma delas, com a apreciação da arte a partir do nu feminino.
A partir daqui temos uma entrega absoluta das atrizes à história: desde as cenas mais lights de carinhos em público, de momentos de contemplação entre as duas até as cenas de sexo propriamente ditas. Cenas que o diretor faz questão que o seu público visualize através de closes sufocantes (ou para alguns, perturbadores). A preferência por essa abordagem é justificada mais pela intensidade que a paixão de Adèle e Emma atinge na trama do que pela vontade gratuita de chocar, impactar, provocar ou até mesmo polemizar. Obviamente que isso irá ocorrer naqueles cujas mentes encontram-se paralisadas no século XVIII, influenciadas por doutrinas diversas e que, por ventura, venham cair de paraquedas numa sessão de Azul é a Cor mais Quente. Uma pena que tais pessoas não poderão desfrutar ao máximo essa obra.
Como nem toda história é perfeita e com uma sociedade sendo composta em sua maioria por seres humanos descritos no parágrafo anterior, o ardente romance de Adèle e Emma começa a sofrer os males atuais da sociedade em relação a uma relação homo afetiva. Na questão familiar, temos a mãe e o padrasto de Emma extremamente abertos quanto ao assunto, enquanto a família de Adèle (que esteve mais presente em cena) personifica os núcleos conservadores ao demonstrar um preconceito velado pela cor de cabelo exótico daquela-que-ajuda-a-filha-em-filosofia e, também, pelo fato dessa ‘tentar’ sobreviver de Arte, uma profissão mal vista e mal paga; nas amizades, os conflitos também continuam: o grupo de amigos GLS de Emma contra a revolta repentina dos colegas de escola de Adèle apenas pela possibilidade de existir ‘uma sapatão’ entre eles.
Não bastando as influências negativas externas, Adèle sofre também as consequências de sua inexperiência, não só no relacionamento a dois, mas em todos os aspectos da vida adulta. Percebemos isso quando a garota sempre fica deslocada ou dá respostas evasivas e/ou genéricas quando a questionam sobre sua carreira profissional, faculdade, independência financeira, etc. Embora ela esteja dando um passo largo e firme em direção à maturidade, assumindo sua homossexualidade, ainda há muita coisa em sua mente que a prende à adolescência (como a falta de ambição ou o comodismo), onde as atitudes e erros têm pouca ou nenhuma consequência, mas que sua namorada não está disposta a perdoar. Talvez seja essa inocência, essa falta de percepção que faz com que sua relação com Emma não prospere. E a forma como Adèle lida com essa separação reforça ainda mais essa imaturidade.
Sem um final propriamente feliz para a protagonista, Azul é a Cor mais Quente é executado tão brilhantemente com o auxílio imprescindível de suas atrizes, que saímos da sessão com uma sensação de esperança e torcida para que tudo dê certo para Adèle. Que ela possa aprender com novas experiências, com novas decepções e que atinja a felicidade que lhe é de direito, não podendo jamais se apegar, ou mesmo sentir inveja em relação ao sucesso que Emma (emocional e profissional) eventualmente atingiu. A vida, o mundo segue e infelizmente nessa trajetória, Adèle não terá aquela mulher de cabelos azuis ao seu lado.
NOTA: 5/5
Acrescento ainda outros detalhes de Azul é a Cor mais Quente que valem a pena ser citados:
– O belíssimo trabalho de direção de arte e cenografia que consegue acrescentar vários e vários tons de azul em tela sem ser cansativo ou desviar a atenção do espectador para esse fato: detalhes na parede, acessórios estéticos das personagens, tudo é azul. Uma espécie de 50 mil tons de azul!
– O desempenho de Adèle Exarchopoulos: já foi mencionado no texto, mas precisa ser novamente reafirmado. Consegue repassar a confusão e receio de sua personagem com uma simples expressão ou apenas com o olhar. Léa Seydoux também não deixa a desejar.
– A ferocidade com que o diretor Abdellatif Kechiche mostra a paixão das duas personagens, onde um único corte seco e rápido separa um jantar casual das cenas de sexo.
– Poético o design de som na cena em que Emma desenha Adèle nua. Num primeiro momento temos apenas o som do rabisco do lápis sobre o papel para só depois revelar o ambiente e as duas atrizes
– A cena de discussão entre Emma e Adèle após a primeira descobrir a traição da última. Não preciso dizer mais nada.